Lua de Março de 2014
Voltei ao Cabeço da Areia na passada sexta-feira, com alguma fé de atirar, tendo em conta que os vestígios da passagem de javalis eram bastantes, e evidentes; as pegadas indicavam que o lameiro era frequentado por vários animais, três machos no mínimo, e entre estes, um muito grande. Os pinheiros junto aos dois lameiros estavam todos pintados, e bem marcados pelas navalhadas do javardo que me anda a fazer a vida negra, já há mais de dois anos...
Fui com o Pedro Bilbao, que me veio buscar a
casa já um pouco para o tardio; no entanto, sabíamos que não iríamos ter
movimento antes das dez da noite. A primeira coisa a fazer, mal chegamos ao
Cabeço, foi montar as armas, ou seja, armar o arco e a besta; logo depois,
vestimo-nos, a pensar numa longa e possivelmente fria espera. Quando nos
despachámos, fomos ver a câmara automática, que estava junto ao meu posto... as
fotos eram pouco nítidas, mas animadoras; nas duas noites anteriores o lameiro
tinha sido visitado pelo menos por dois javardos, ambos machos, e já com um
certo porte. Não se conseguiu perceber se outros lá teriam passado, porque a
câmara não é das melhores, e o atraso no disparo em relação à detecção do
movimento, é significativo... E havia fotos só com a paisagem, e outras pegadas
mais pequenas...
O Pedro ficou no chamado Posto da Casinha, que
tem um excelente e sólido abrigo, junto a outro lameiro e a dois pinheiros bem
marcados. O tiro é fácil e curto; a dificuldade reside no movimento inconstante
dos animais, naquele lugar. Tínhamos deixado lá algum milho, três noites antes,
e tinham comido tudo. A combinação, entre nós, e quanto a horas de saída, era
encontrarmo-nos no carro às duas da manhã. Noite belíssima, clara e sem vento; quase
Lua Cheia...Um pouco mais quente, e pareceria Verão.
Deixei o Pedro, e lá fui para o meu posto. Fica
dentro dum desses abrigos de montar, por trás do lameiro que tem a câmara, lameiro
esse que não vejo directamente, mas que ouço o que
lá se passa. Quem vir como coloquei o abrigo, dirá que não está nada bem, e que
é mal servido de ventos... De facto, não é o melhor local, mas é o único
possível, tendo em conta a conformação do terreno, e a maneira como os animais
se mexem...
Arranjei forma de
atirar até aos dezoito metros, numa zona larga entre um pedaço de mato mais
forte e uma moita, com espaço limpo que se estende até uma azinheira toda
pintada de lama. Fiz do sítio um comedouro grande mas muito pouco denso: o
milho e a aveia estão espalhados por uma área maior, em vez de estarem
concentrados num só ponto. A ideia é fazer com que os javalis encarem logo com
a comida, venham eles donde vierem. Por outro lado, além de os obrigar a
“trabalhar” mais um pouco e permanecerem mais tempo no local, o cheiro da
comedoria é mais intenso, e tem tendência a cobrir o meu.
Não uso tapa
cheiros, desses de compra. Para disfarçar qualquer cheiro que eu leve,
nomeadamente o das cigarrilhas do Pedro, (que insiste em fumar dentro do carro)
uso chá de esteva, concentrado, e não quero outra coisa. Às vezes, junto
alecrim ou rosmaninho; também serve para o efeito a água de milho cozido,
espalhada sobre a zona, e a encharcar um pano que penduro no posto. Na época
certa, e no local adequado, uso aroma de eucalipto.
Entrei no abrigo e
fechei duas janelas e a porta, para evitar que o vento entrasse, e para ter
mais algum resguardo no que toca a ruídos e cheiros, deixando só a janela de
tiro aberta, a encarar toda a área à minha frente. Lá me ajeitei na minha
cadeira, que até é bastante cómoda, com o assento e as costas forrados com uma
velha capa de banco de automóvel, dessas a imitar pele de ovelha; é quente e
silencioso, o tal forro. A mochila espanhola em pele, muito estimada por ser uma
oferta de aniversário do João Acabado e do Luiz Pacheco, ficou aberta e à mão
de semear; também a jeito ficaram os pacotes de leite com chocolate e as
bolachas. Abri o arco várias vezes, para ver se não batia em nada, e para
perceber melhor quais as possíveis direcções de tiro.
As horas foram
passando, a canzoada ia latindo ao longe, sentindo a passagem dos bichos. E lá
se vai pensando na vida, nas alegrias e nas tristezas, nos problemas, que
teimam em martelar-nos a cabeça, e nos projectos para o futuro. Os pirilampos
ainda não andam por lá, nem esses apareceram para me distrair. Enfim...Tempus
fugit.
O vento era
pouquíssimo, quase nulo, mas firme na direcção, de Noroeste. Os auscultadores
que tinha colocado, ligados a um microfone de boa sensibilidade, faziam-me
sentir mais novo, na altura em que os meus ouvidos ainda funcionavam muito bem,
sem o castigo dos tiros e das friagens na caça submarina e no surf. E ia escutando
tudo; um ratinho que ia de fugida buscar uns grãos ao cevadouro, dois coelhos
que por lá passaram, mais que desconfiados...Estava com tosse, pigarreei com o
cachecol a cobrir o som, e bebi um leite com chocolate para ajudar a tirar
aquela impressão na garganta, Devia ter trazido uns rebuçados de mentol...
Agora, eram os cães
da quinta que davam sinal. Andava por ali qualquer coisa, de certeza. E era nas
minhas costas. Depois de estar parado tanto tempo, era melhor tentar aquecer a
musculatura específica, antes de abrir o arco. Sempre são cinquenta e oito
libras a vinte e sete polegadas de abertura; mesmo só puxando vinte e seis, e
momentaneamente, ainda é um pouco duro... Mas para aquecer não é preciso muito,
basta rodar os ombros e contrair várias vezes os músculos solicitados por
aquele tipo de esforço....
Agora, a atenção
estava toda focada na detecção de qualquer barulho, que mesmo fraco, seria
indicador do que podia acontecer. Às 11h10m, os cães fizeram uma algazarra
enorme, a menos de cinquenta metros da minha posição, e outra vez atrás de mim.
Depois, ouvi passos, aquele som do pisar característico na terra macia.
Eram 11h15m, quando
ouvi um javali, a esfregar-se na lama, e depois a sacudir as orelhas. Não
percebi se foi a um dos pinheiros para a coça habitual. Soprou com força, uma
só vez. Ter-me-ia sentido? O coração acelerou, e muito, como me acontece
habitualmente; depois acalmo, assim que vejo o animal.
A seguir, o javardo
atravessou a manchinha de mato que o separava do milho, e meio encoberto pelos
arbustos e sombra, começou a comer. Via-o mal, meio no escuro; estava a uns
doze ou treze metros, talvez um pouco mais. Com os binóculos tentei visualizar
qual a posição, e só então compreendi que comia de joelhos, como se fosse um facochero!
Esperei que se colocasse melhor, uns cinco minutos, até que o bicho,
satisfeito, se levantou, a tomar ventos. Hesitei; a posição da minha cadeira
não era a melhor, o javardo estava a jeito, a três quartos, de costas para
mim... mas para o apontar bem, teria de me mexer um pouco. Com medo que se
fosse embora e não entrasse mais, abri o arco, na altura em que o javali
levantava a crina, alarmado pelo ínfimo ruído que fizera, a ajeitar-me para
disparar. Concentrei-me num ponto que só adivinhava, no flanco do animal.
Larguei a corda, e ouvi a flecha a bater; sem berraria, o javardo arrancou.
Percebi que a corrida durou pouco tempo, “senti
o lance” através dos auscultadores.
Era altura de acalmar.
Para fazer tempo, fui arrumando as coisas dentro do abrigo. Telefonei ao meu
companheiro Pedro Bilbao, e contei-lhe o que tinha acontecido.
- Traz a besta armada, e vem junto aos arames.
Acho que o bicho está aqui, mas pelo sim, pelo não...
Quando chegou,
fomos ver o que se passava, a lança na mão como precaução. Depois, foi fácil,
porque os cães da quinta ladravam na direcção que eu sabia que o javali tinha
tomado, confirmando o que eu pensava, e o que o arranque, marcado no chão,
indicava. A 50 metros
do tiro e já dentro do mato cerrado, estava os primeiros pingos e manchas de sangue,
a sua sucessão a mostrar que a querença do animal era descer para o ribeiro.
Mais dez metros, e numa zona íngreme, lá estava ele. Vi-o com a lanterna,
quando me deitei no chão, e a menos de três metros de mim, debaixo de tojo
seco, só com os pernis à mostra...Chegar lá foi mais difícil! O problema
começou aí, tendo em conta que o mato é do mais custoso que há, muito sujo, composto
por estevas, tojo, medronheiros, silvas e trepadeiras, troncos caídos, tudo
enleado, que nos impede o andar, e que não nos deixa ver nem dois metros para a
frente, se estivermos de pé. Seguiram-se as habituais felicitações, entre
amigos que caçam juntos há mais de trinta anos. E depois, um momento de
silêncio e de reflexão, para agradecer o lance à nossa presa.
- Vá, vamos tirá-lo daqui...
Era mais fácil
dizê-lo que fazê-lo, tendo em conta o cerrado em que estávamos. Às tantas, nem
para a frente, nem para trás! E o javardo não era tão pequeno como isso; não o
pesámos, mas calculo que teria um mínimo de setenta quilos. Logo, depois de
alguma discussão em relação ao modo de proceder, lá concordámos...A opção foi
descer em direcção à linha de água, e a partir daí chegar a um caminho velho
que nos deixasse andar. E assim foi...Mas o caminho era longo e difícil, e eu
rogava mais pragas que um carroceiro desnorteado. Optámos por tirar as tripas,
deixando-as enterradas sob um aluimento de terra na encosta, fácil de manusear
para tapar os despojos. Mesmo assim, foi um bico-de-obra! Depois das
fotografias da praxe, carregámos o bicho no carro, e viemos até à minha casa,
onde completámos as honrosas tarefas de esfola, desmanchar a carcaça e dividir
a carne. Eram seis e meia da matina, estava eu de mangueira na mão a lavar o
quintal. Só me deitei eram sete horas!
Fica a boa recordação,
e um cansaço terrível!
O arco que usei foi
o fiel recurvo Border Black Douglas, com 58# a 27” de puxada. A ponta, foi uma
clássica Bear Razorhead de duas lâminas fixas. A flecha é pesada, para ter um
bom “momentum”, ajudando a penetração. O mais tradicional possível...Continuo a
defender a teoria de que, para esperas nocturnas com arco, se deve optar por um
recurvo, ou longbow, sem mira, o mais simples que houver, mas de boa qualidade,
e com a potência mínima adequada, claro! Exige mais treino, evidentemente, mas
é um prazer enorme treinar o chamado tiro instintivo, e começar a sentir os
resultados e a melhoria da nossa performance. Quando atingimos a forma
necessária, a confiança em nós e na nossa arma é enorme.
Costumo treinar de
noite, em condições semelhantes àquelas que encontro na caça de espera aos
javalis; felizmente consigo fazer isso no meu quintal...É mais do que obrigatório
atirar perto: no máximo, até aos quinze metros, e com muito bom luar! E isso
dá-me um grande gozo, a proximidade da presa.
Os arcos compound
são belíssimos e eficientes para esperas diurnas, ou caça de aproximação,
também de dia. Super rápidos, fazem tiros, nessas ocasiões e em condições
ideais, a mais de cinquenta metros! O caçador comum, nas esperas nocturnas, só
com muita prática no manuseio destes arcos é que se safa, pois são, por
natureza, instrumentos complicados... cabos, roldanas, mira, iluminador das
miras, disparador, rangefinder... Náááá. A estes arcos, prefiro uma besta, que
é muito eficaz. Ou então caço de carabina, que é excelente!
Quanto a “balística
terminal”, neste meu lance, a flecha entrou atrás da última costela, e seguiu
longitudinalmente, cortando todos os órgãos que encontrou no seu caminho, e os
grandes vasos, causando forte hemorragia interna e alguma externa, que deu para
pistar. Uma nota: As mãos do animal tinham as unhas deformadas, como se tivesse
sido ferido em pequeno, ou talvez sofrido de febre aftosa...As unhas estavam
soldadas; já tínhamos reparado, dois dias antes, numa pegada esquisita. Mas
havia tantas, no lameiro, que não ligámos muito àquela! Bom, o grande ainda lá
está, e já nos tratamos por tu... Ao longo de três anos, ele tem ganho todos os
lances...
A câmara ficou
ligada, pode ser que tenhamos o prazer de o ver virtualmente, na nossa próxima
visita de preparação. Vamos lá, então, esperar por uma bonita Lua de Abril...Mesmo
sem javalis, é um prazer estar no campo.
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