quinta-feira, 27 de março de 2014

Lua de Março de 2014


Voltei ao Cabeço da Areia na passada sexta-feira, com alguma fé de atirar, tendo em conta que os vestígios da passagem de javalis eram bastantes, e evidentes; as pegadas indicavam que o lameiro era frequentado por vários animais, três machos no mínimo, e entre estes, um muito grande. Os pinheiros junto aos dois lameiros estavam todos pintados, e bem marcados pelas navalhadas do javardo que me anda a fazer a vida negra, já há mais de dois anos...
Fui com o Pedro Bilbao, que me veio buscar a casa já um pouco para o tardio; no entanto, sabíamos que não iríamos ter movimento antes das dez da noite. A primeira coisa a fazer, mal chegamos ao Cabeço, foi montar as armas, ou seja, armar o arco e a besta; logo depois, vestimo-nos, a pensar numa longa e possivelmente fria espera. Quando nos despachámos, fomos ver a câmara automática, que estava junto ao meu posto... as fotos eram pouco nítidas, mas animadoras; nas duas noites anteriores o lameiro tinha sido visitado pelo menos por dois javardos, ambos machos, e já com um certo porte. Não se conseguiu perceber se outros lá teriam passado, porque a câmara não é das melhores, e o atraso no disparo em relação à detecção do movimento, é significativo... E havia fotos só com a paisagem, e outras pegadas mais pequenas...
O Pedro ficou no chamado Posto da Casinha, que tem um excelente e sólido abrigo, junto a outro lameiro e a dois pinheiros bem marcados. O tiro é fácil e curto; a dificuldade reside no movimento inconstante dos animais, naquele lugar. Tínhamos deixado lá algum milho, três noites antes, e tinham comido tudo. A combinação, entre nós, e quanto a horas de saída, era encontrarmo-nos no carro às duas da manhã. Noite belíssima, clara e sem vento; quase Lua Cheia...Um pouco mais quente, e pareceria Verão.
Deixei o Pedro, e lá fui para o meu posto. Fica dentro dum desses abrigos de montar, por trás do lameiro que tem a câmara, lameiro esse que não vejo directamente, mas que ouço o que lá se passa. Quem vir como coloquei o abrigo, dirá que não está nada bem, e que é mal servido de ventos... De facto, não é o melhor local, mas é o único possível, tendo em conta a conformação do terreno, e a maneira como os animais se mexem...
Arranjei forma de atirar até aos dezoito metros, numa zona larga entre um pedaço de mato mais forte e uma moita, com espaço limpo que se estende até uma azinheira toda pintada de lama. Fiz do sítio um comedouro grande mas muito pouco denso: o milho e a aveia estão espalhados por uma área maior, em vez de estarem concentrados num só ponto. A ideia é fazer com que os javalis encarem logo com a comida, venham eles donde vierem. Por outro lado, além de os obrigar a “trabalhar” mais um pouco e permanecerem mais tempo no local, o cheiro da comedoria é mais intenso, e tem tendência a cobrir o meu.
Não uso tapa cheiros, desses de compra. Para disfarçar qualquer cheiro que eu leve, nomeadamente o das cigarrilhas do Pedro, (que insiste em fumar dentro do carro) uso chá de esteva, concentrado, e não quero outra coisa. Às vezes, junto alecrim ou rosmaninho; também serve para o efeito a água de milho cozido, espalhada sobre a zona, e a encharcar um pano que penduro no posto. Na época certa, e no local adequado, uso aroma de eucalipto.
Entrei no abrigo e fechei duas janelas e a porta, para evitar que o vento entrasse, e para ter mais algum resguardo no que toca a ruídos e cheiros, deixando só a janela de tiro aberta, a encarar toda a área à minha frente. Lá me ajeitei na minha cadeira, que até é bastante cómoda, com o assento e as costas forrados com uma velha capa de banco de automóvel, dessas a imitar pele de ovelha; é quente e silencioso, o tal forro. A mochila espanhola em pele, muito estimada por ser uma oferta de aniversário do João Acabado e do Luiz Pacheco, ficou aberta e à mão de semear; também a jeito ficaram os pacotes de leite com chocolate e as bolachas. Abri o arco várias vezes, para ver se não batia em nada, e para perceber melhor quais as possíveis direcções de tiro.
As horas foram passando, a canzoada ia latindo ao longe, sentindo a passagem dos bichos. E lá se vai pensando na vida, nas alegrias e nas tristezas, nos problemas, que teimam em martelar-nos a cabeça, e nos projectos para o futuro. Os pirilampos ainda não andam por lá, nem esses apareceram para me distrair. Enfim...Tempus fugit.
O vento era pouquíssimo, quase nulo, mas firme na direcção, de Noroeste. Os auscultadores que tinha colocado, ligados a um microfone de boa sensibilidade, faziam-me sentir mais novo, na altura em que os meus ouvidos ainda funcionavam muito bem, sem o castigo dos tiros e das friagens na caça submarina e no surf. E ia escutando tudo; um ratinho que ia de fugida buscar uns grãos ao cevadouro, dois coelhos que por lá passaram, mais que desconfiados...Estava com tosse, pigarreei com o cachecol a cobrir o som, e bebi um leite com chocolate para ajudar a tirar aquela impressão na garganta, Devia ter trazido uns rebuçados de mentol...
Agora, eram os cães da quinta que davam sinal. Andava por ali qualquer coisa, de certeza. E era nas minhas costas. Depois de estar parado tanto tempo, era melhor tentar aquecer a musculatura específica, antes de abrir o arco. Sempre são cinquenta e oito libras a vinte e sete polegadas de abertura; mesmo só puxando vinte e seis, e momentaneamente, ainda é um pouco duro... Mas para aquecer não é preciso muito, basta rodar os ombros e contrair várias vezes os músculos solicitados por aquele tipo de esforço....
Agora, a atenção estava toda focada na detecção de qualquer barulho, que mesmo fraco, seria indicador do que podia acontecer. Às 11h10m, os cães fizeram uma algazarra enorme, a menos de cinquenta metros da minha posição, e outra vez atrás de mim. Depois, ouvi passos, aquele som do pisar característico na terra macia.
Eram 11h15m, quando ouvi um javali, a esfregar-se na lama, e depois a sacudir as orelhas. Não percebi se foi a um dos pinheiros para a coça habitual. Soprou com força, uma só vez. Ter-me-ia sentido? O coração acelerou, e muito, como me acontece habitualmente; depois acalmo, assim que vejo o animal.
A seguir, o javardo atravessou a manchinha de mato que o separava do milho, e meio encoberto pelos arbustos e sombra, começou a comer. Via-o mal, meio no escuro; estava a uns doze ou treze metros, talvez um pouco mais. Com os binóculos tentei visualizar qual a posição, e só então compreendi que comia de joelhos, como se fosse um facochero! Esperei que se colocasse melhor, uns cinco minutos, até que o bicho, satisfeito, se levantou, a tomar ventos. Hesitei; a posição da minha cadeira não era a melhor, o javardo estava a jeito, a três quartos, de costas para mim... mas para o apontar bem, teria de me mexer um pouco. Com medo que se fosse embora e não entrasse mais, abri o arco, na altura em que o javali levantava a crina, alarmado pelo ínfimo ruído que fizera, a ajeitar-me para disparar. Concentrei-me num ponto que só adivinhava, no flanco do animal. Larguei a corda, e ouvi a flecha a bater; sem berraria, o javardo arrancou.
 Percebi que a corrida durou pouco tempo, “senti o lance” através dos auscultadores.
Era altura de acalmar. Para fazer tempo, fui arrumando as coisas dentro do abrigo. Telefonei ao meu companheiro Pedro Bilbao, e contei-lhe o que tinha acontecido.
 - Traz a besta armada, e vem junto aos arames. Acho que o bicho está aqui, mas pelo sim, pelo não...
Quando chegou, fomos ver o que se passava, a lança na mão como precaução. Depois, foi fácil, porque os cães da quinta ladravam na direcção que eu sabia que o javali tinha tomado, confirmando o que eu pensava, e o que o arranque, marcado no chão, indicava. A 50 metros do tiro e já dentro do mato cerrado, estava os primeiros pingos e manchas de sangue, a sua sucessão a mostrar que a querença do animal era descer para o ribeiro. Mais dez metros, e numa zona íngreme, lá estava ele. Vi-o com a lanterna, quando me deitei no chão, e a menos de três metros de mim, debaixo de tojo seco, só com os pernis à mostra...Chegar lá foi mais difícil! O problema começou aí, tendo em conta que o mato é do mais custoso que há, muito sujo, composto por estevas, tojo, medronheiros, silvas e trepadeiras, troncos caídos, tudo enleado, que nos impede o andar, e que não nos deixa ver nem dois metros para a frente, se estivermos de pé. Seguiram-se as habituais felicitações, entre amigos que caçam juntos há mais de trinta anos. E depois, um momento de silêncio e de reflexão, para agradecer o lance à nossa presa.
 - Vá, vamos tirá-lo daqui...





Era mais fácil dizê-lo que fazê-lo, tendo em conta o cerrado em que estávamos. Às tantas, nem para a frente, nem para trás! E o javardo não era tão pequeno como isso; não o pesámos, mas calculo que teria um mínimo de setenta quilos. Logo, depois de alguma discussão em relação ao modo de proceder, lá concordámos...A opção foi descer em direcção à linha de água, e a partir daí chegar a um caminho velho que nos deixasse andar. E assim foi...Mas o caminho era longo e difícil, e eu rogava mais pragas que um carroceiro desnorteado. Optámos por tirar as tripas, deixando-as enterradas sob um aluimento de terra na encosta, fácil de manusear para tapar os despojos. Mesmo assim, foi um bico-de-obra! Depois das fotografias da praxe, carregámos o bicho no carro, e viemos até à minha casa, onde completámos as honrosas tarefas de esfola, desmanchar a carcaça e dividir a carne. Eram seis e meia da matina, estava eu de mangueira na mão a lavar o quintal. Só me deitei eram sete horas!
Fica a boa recordação, e um cansaço terrível!
O arco que usei foi o fiel recurvo Border Black Douglas, com 58# a 27” de puxada. A ponta, foi uma clássica Bear Razorhead de duas lâminas fixas. A flecha é pesada, para ter um bom “momentum”, ajudando a penetração. O mais tradicional possível...Continuo a defender a teoria de que, para esperas nocturnas com arco, se deve optar por um recurvo, ou longbow, sem mira, o mais simples que houver, mas de boa qualidade, e com a potência mínima adequada, claro! Exige mais treino, evidentemente, mas é um prazer enorme treinar o chamado tiro instintivo, e começar a sentir os resultados e a melhoria da nossa performance. Quando atingimos a forma necessária, a confiança em nós e na nossa arma é enorme.
Costumo treinar de noite, em condições semelhantes àquelas que encontro na caça de espera aos javalis; felizmente consigo fazer isso no meu quintal...É mais do que obrigatório atirar perto: no máximo, até aos quinze metros, e com muito bom luar! E isso dá-me um grande gozo, a proximidade da presa.
Os arcos compound são belíssimos e eficientes para esperas diurnas, ou caça de aproximação, também de dia. Super rápidos, fazem tiros, nessas ocasiões e em condições ideais, a mais de cinquenta metros! O caçador comum, nas esperas nocturnas, só com muita prática no manuseio destes arcos é que se safa, pois são, por natureza, instrumentos complicados... cabos, roldanas, mira, iluminador das miras, disparador, rangefinder... Náááá. A estes arcos, prefiro uma besta, que é muito eficaz. Ou então caço de carabina, que é excelente!
Quanto a “balística terminal”, neste meu lance, a flecha entrou atrás da última costela, e seguiu longitudinalmente, cortando todos os órgãos que encontrou no seu caminho, e os grandes vasos, causando forte hemorragia interna e alguma externa, que deu para pistar. Uma nota: As mãos do animal tinham as unhas deformadas, como se tivesse sido ferido em pequeno, ou talvez sofrido de febre aftosa...As unhas estavam soldadas; já tínhamos reparado, dois dias antes, numa pegada esquisita. Mas havia tantas, no lameiro, que não ligámos muito àquela! Bom, o grande ainda lá está, e já nos tratamos por tu... Ao longo de três anos, ele tem ganho todos os lances...


A câmara ficou ligada, pode ser que tenhamos o prazer de o ver virtualmente, na nossa próxima visita de preparação. Vamos lá, então, esperar por uma bonita Lua de Abril...Mesmo sem javalis, é um prazer estar no campo.